Quart@ Online – Insolvência Transnacional E Os 20 Anos Da Lei: Passado, Presente E Futuro

maio 2, 2025

painelistas: Francisco Satiro (Moderador do painel e sócio do Satiro Advogados); Michael McCourt (Debatedor e sócio do Norton Rose Fullbright); Nyana Miller (Debatedora e sócia do Sequor Law); Paulo Campana (Debatedor e sócio do Campana Pacca Advogados) e Nathalia Muñoz Vianna (Relatora do painel e Sócia do Vianna, Bürke & Oliveira Franco Advogados).

Sumário:

Introdução
Exposição e Debates
 Considerações finais 
Palavras-Chave: Recuperação Judicial – 20 anos da Lei nº 11.101/2005 – Insolvência Transnacional – Chapter 15

1. INTRODUÇÃO

No dia 26 de fevereiro de 2025, a TMA Brasil promoveu mais um evento da série “Quart@ Online” com o tema “Insolvência Transnacional e os 20 anos da Lei: passado, presente e futuro”, realizado de forma online e transmitido via YouTube (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CenvkzHNIMw).

O painel reuniu renomados especialistas da área jurídica, contando com a moderação de Francisco Satiro, sócio do Satiro Advogados e com os seguintes debatedores: Michael McCourt, sócio do Norton Rose Fullbright; Nyana Miller, sócia do Sequor Law; e Paulo Campana, sócio do Campana Pacca Advogados.

2. EXPOSIÇÕES E DEBATES

O painel foi iniciado pelo Dr. Francisco Satiro, moderador e sócio do Satiro Advogados que ressaltou a importância de se discutir a evolução do tema relativo à Insolvência Transnacional, tendo destacado que há 20 anos, quando da entrada em vigor da Lei nº 11.101/2005, nem se falava muito em Insolvência Transnacional e que se passou a pensar mais sobre o tema a partir do caso Varig.

Na sequência, o moderador passou a palavra ao Dr. Paulo Campana, sócio do Campana Pacca Advogados, para abordar o panorama histórico da evolução da Insolvência Transnacional no direito brasileiro.

O Dr. Paulo Campana explicou que desde o século 19 existiam algumas regras sobre o tema, mas até 1929 elas faziam parte das leis de insolvência e comerciais. Em 1939, a matéria passou a ser regulada pelo Código de Processo Civil de 1939, sendo que quando o Código foi atualizado, em 1973, a matéria foi suprimida, existindo, à época, inclusive, uma discussão se ao tema poder-se-ia aplicar o Código de Processo Civil de 1939.

Esclareceu que quando a Lei nº 11.101 entrou em vigor em 2005, substituindo o Decreto nº 7.661/1945, ela não trouxe nenhuma regra de insolvência transnacional. Contudo, mencionou o Dr. Paulo Campana que já no primeiro caso sob a nova legislação se teve um contato com a insolvência transnacional por conta do caso Varig.

Explicou, ainda, que no mesmo ano da entrada em vigor da Lei nº 11.101/2005 no Brasil, entrou em vigor nos Estados Unidos o “Chapter 15” do “Bankruptcy Code” que incorporava a lei modelo da UNCITRAL e regulava o reconhecimento dos processos estrangeiros de insolvência. Esclareceu que, apesar da lei modelo ser de 1997, poucos países a tinham incorporado. Somente após a incorporação pelos Estados Unidos é que outros países começaram a aderir com mais expressividade, a exemplo da Inglaterra e do Canadá. O Brasil, por sua vez, somente incorporou a lei modelo em 2020 com a reforma da Lei nº 11.101/2005.

Ainda, o Dr. Paulo Campana explicou que entre 2005 e 2020, o Brasil teve mais contato com a insolvência transnacional de uma forma “outbound”. Ou seja, era o Brasil que pedia o reconhecimento de recuperações judiciais brasileiras no exterior, principalmente nos Estados Unidos, e para tanto, era aplicado o “Chapter 15”.

Na sequência, foi dada a palavra a Dra. Nyana Miller, sócia do Sequor Law, que abordou os aspectos relativos ao surgimento da lei modelo no contexto internacional.

Elucidou, outrossim, que a lei modelo adota o que se denomina de universalismo modificado, não sendo, portanto, um universalismo absoluto, sendo bastante importante buscar e entender como o texto da lei modelo vem sendo interpretado em outros países.

Esclareceu que um dos aspectos trazidos pela lei modelo é o processo de reconhecimento (quais são os processos que merecem ser reconhecidos), sendo este o processo que mais precisa de uniformidade. A etapa da concessão de medidas, que vem depois do reconhecimento, é mais flexível e admite um pouco mais de discricionariedade do juiz.

A Dra. Nyana Miller explicou que para facilitar a uniformização e o universalismo modificado a UNCITRAL fez um guia, o qual foi atualizado em 2014 (“Guide to Enactment”). Ainda, informou que existe também um compilado de jurisprudências de todos os países que têm adotado a lei modelo (“UNCITRAL Digest of Case Law”). Tanto o guia quanto o compilado podem ser acessados através do website da UNCITRAL[1].

Na sequência, o Dr. Francisco Satiro, moderador, levantou um ponto para discussão ponderando que a despeito de existir o universalismo mitigado, inclusive para não ofender a soberania dos países, no Brasil se costuma ouvir muito que no caso de insolvência transnacional exista uma consolidação substancial internacional, ficando todas as partes submetidas ao poder de um determinado juiz. Na sequência, questionou a Dra. Nyana Miller se isso faz sentido.

A Dra. Nyana Miller, por sua vez, ao discorrer sobre o tema, esclareceu que a ponderação faz total sentido e que a despeito de haver a necessidade de se respeitar a soberania dos países, é importante que se tenha uma cooperação consolidada, sob pena de o processo em si perder eficiência.

Ato contínuo, foi dada a palavra ao Dr. Michael McCourt, sócio do Norton Rose Fullbright, que argumentou que a lei modelo facilitou muito o reconhecimento de processos brasileiros nos Estados Unidos. Informou, ainda, que de acordo com dados do Global Restructuring Review, desde 2009 se teve aproximadamente 70 casos de devedores brasileiros requerendo o reconhecimento de seus processos em outros países, principalmente nos Estados Unidos, tendo ressaltado que talvez os primeiros casos tenham sido o da Varig e do Independência.

O Dr. Michael McCourt tratou ainda de casos emblemáticos que tiveram o pedido de reconhecimento contestado, como o caso da Rede Energia, da OAS, da Oi e da Intercement.

Na sequência, o Dr. Paulo Campana citou mais alguns exemplos de pedidos de reconhecimento, como do grupo OGX e da Lupatech, explicando as nuances de cada um deles.

O Dr. Francisco Satiro argumentou que são muitos casos envolvendo a questão do reconhecimento de processos e que o tema ainda vem sendo amadurecido, assim como a própria aplicação da Lei.

Levantou, na oportunidade, um outro ponto importante argumentando que vários dos processos pelo Chapter 15, em verdade, visam a buscar ativos de devedores brasileiros que estão de alguma forma localizados nos Estados Unidos. Informou, ainda, que a própria UNCITRAL elaborou um documento sobre boas práticas relativas ao processo investigativo de bens (“asset tracing”).

Ao comentar sobre o assunto, a Dra. Nyana Miller buscou esclarecer a razão pela qual os processos vão para os Estados Unidos para rastrear ativos. Explicou, assim, que os processos vão para lá em decorrência da força do sistema financeiro americano. Ou seja, como muitas transferências financeiras internacionais passam pelos Estados Unidos, é fato que os bancos americanos acabam tendo documentos e informações acerca das respectivas transferências, as quais podem servir como prova da remessa de valores para o exterior e de eventual fraude.

Como exemplo de uso do Chapter 15 para rastreio de ativos, a Dra. Nyana Miller citou o caso do Banco Santos, elucidando que o Chapter 15 foi utilizado tanto para investigação quanto para arrecadação das obras de arte e, também, para fazer um pedido de indenização de terceiros que facilitaram a lavagem de dinheiro.

O Dr. Francisco Satiro, moderador, teceu considerações acerca das companhias brasileiras que vão aos Estados Unidos não em busca de cooperação, mas em busca do procedimento mesmo do Chapter 11 e pediu ao Dr. Michael que expusesse sua experiência acerca dessas empresas que buscam outros sistemas jurídicos para fazerem a sua reestruturação.

O Dr. Michael McCourt ponderou que, de fato, ao longo dos últimos anos se tem visto uma espécie de internacionalização de estratégia de reestruturação das empresas brasileiras, ou seja, um aumento no número de casos de devedores brasileiros utilizando o processo de reorganização em outros países para reestruturar parcial ou integralmente suas dívidas. Compartilhou que muitos são os fatores que levam as empresas a utilizarem o Chapter 11, sendo um deles a disponibilidade de um mercado de DIP Financing mais seguro e desenvolvido nos Estados Unidos para que as empresas possam acessar um capital quase imediato. Além disso, nos casos das companhias aéreas, por exemplo, um outro fator foi a flexibilidade de eliminar ou assumir, com modificações, obrigações onerosas de contratos.

O Dr. Paulo Campana, por sua vez, argumentou que, de fato, tem aumentado o número de empresas brasileiras utilizando o Chapter 11 muito em razão dos recursos e mecanismos existentes nos Estados Unidos e que se mostraram tão eficientes ao longo dos anos, somado a uma decepção muito grande com o resultado dos processos brasileiros. Mencionou que no caso das companhias aéreas que ajuizaram recuperação judicial no Brasil houve um fracasso e muitas acabaram quebrando, diferentemente daquelas que ajuizaram nos Estados Unidos e acabaram tendo processos de reestruturação mais bem sucedidos.

Acrescentou, outrossim, que em 2020, com as alterações propostas pela Lei nº 14.112/2020, passou-se a admitir o processo de reconhecimento no Brasil com a consequente incorporação, com algumas modificações, da lei modelo da UNCITRAL, na Lei de Falências (art. 167-A e seguintes da Lei). A primeira tentativa de reconhecimento de um processo estrangeiro no Brasil foi o caso da LATAM, pedido pelo Ministério Público e que foi, no entanto, indeferido pelo juiz sob o argumento de que pela lei brasileira quem pode ajuizar o pedido de reconhecimento é o próprio devedor.

Um outro caso de reconhecimento de processos estrangeiros de insolvência no Brasil citado pelo Dr. Paulo Campana, foi o da PROSAFE no Rio de Janeiro, o qual, ao contrário do caso LATAM, foi prontamente reconhecido pelo Tribunal carioca.

Note-se que, a despeito dos dois casos acima, o Dr. Paulo Campana enfatizou que, em verdade, muito poucas empresas que pedem o Chapter 11 postulam o reconhecimento no Brasil.

Para Dra. Nyana Miller a razão disso acontecer se volta para os propósitos do Chapter 11 (vincular os bondholders e as pessoas que claramente se sujeitam à jurisdição americana), de modo que as empresas, em verdade, não precisariam do reconhecimento brasileiro. Isso, contudo, na visão da Dra. Nyana Miller, gera uma grande incerteza no mercado brasileiro, na medida em que os credores brasileiros de uma empresa que pediu o Chapter 11 ficam bastante em dúvida de como agir. Por exemplo, ao receberem uma carta do Tribunal de Nova York, eles devem se sujeitar ao “automatic stay”, devem se habilitar no processo estrangeiro, devem apresentar eventual impugnação de crédito? São diversos os questionamentos nesse sentido.

Nessa medida, esclareceu a Dra. Nyana Miller que se o credor brasileiro juridicamente “colocar pé” nos Estados Unidos e/ou tiver investimentos por lá, ele se sujeita a competência do juiz americano e, portanto, estaria vinculado ao processo do Chapter 11, não podendo, assim, violar o “automatic stay”. Ao contrário, se o credor brasileiro não tiver nada nos Estados Unidos ele não estará vinculado ao Chapter 11 e o “automatic stay” não terá efeitos jurídicos no Brasil, o que faz com que as empresas estrangeiras tenham que lidar, por exemplo, com ações judiciais no Brasil.

Por fim, diversamente do que ocorre com a recuperação judicial no Brasil e pelo Chapter 11, que se apresentam um tanto quanto burocráticos, o Dr. Michael McCourt ponderou que em alguns lugares como no Reino Unido, Singapura e Holanda existem mecanismos e instrumentos mais cirúrgicos, e, portanto, mais rápidos e menos onerosos para o devedor (o “scheme of arrangement” ou o “restructuring plan”) de modo a facilitar e agilizar o processo de reestruturação.

O Dr. Paulo Campana muito bem ponderou que desde a entrada em vigor da Lei nº 11.101/2005, há 20 anos, houve uma evolução muito grande no Brasil a respeito do tema da insolvência transnacional, também impulsionada pela entrada em vigor do Chapter 15 nos Estados Unidos.

Segundo o Dr. Paulo Campana, a aplicação da lei começou de forma mais tímida com processos brasileiros que precisavam de auxílio no exterior (outbound) principalmente nos Estados Unidos, tendo prosseguido com empresas estrangeiras ajuizando processos de recuperação judicial no Brasil e pedindo o reconhecimento em outros países.

Concluiu aduzindo que com a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020, houve uma facilitação, também, do reconhecimento de processos estrangeiros no Brasil, o que melhorou muito o cenário e tornou os processos brasileiros pouco mais atrativos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O painel promoveu um debate enriquecedor sobre a insolvência transnacional tendo demonstrado que evolução da insolvência transnacional no Brasil reflete um processo contínuo de adaptação e alinhamento com as melhores práticas internacionais. Desde a entrada em vigor da Lei nº 11.101/2005, o país passou de um cenário inicial de pouca regulamentação para um ambiente mais estruturado, especialmente após a reforma de 2020, que incorporou elementos da lei modelo da UNCITRAL.

Fato é que o reconhecimento de processos estrangeiros no Brasil ainda é um tema em amadurecimento, mas já demonstra avanços significativos, proporcionando uma maior previsibilidade e segurança jurídica para empresas e credores envolvidos em procedimentos de reestruturação.

Além disso, a interação com sistemas jurídicos estrangeiros, especialmente os dos Estados Unidos, tem moldado a forma como as empresas brasileiras lidam com processos de insolvência.

Desse modo, conclui-se que o debate sobre a consolidação e aprimoramento do regime de insolvência transnacional continua sendo essencial para fortalecer a cooperação jurídica internacional e garantir um ambiente mais estável para empresas em dificuldades financeiras.